Uma foto de jornal mostrou a imagem de um procurado pela justiça. Isso foi o bastante para o chefe de tesouraria da multinacional reconhecer que o traficante era irmão do seu subordinado; exatamente, Júnior. Esse foi o primeiro chefe da empresa a lhe rogar drogas, relata. Cinqüenta reais de “camisa de linha”, o pedido. Júnior disse ter ficado surpreso com a situação, mas não hesitou na possibilidade de ganhar um dinheiro extra e procurou o irmão a fim de comprar a cocaína para revender. Assim, como “aviãozinho”, Júnior, conhecido como Beleléu, teve o primeiro contato com a “farinha”, conta.
A fala era bodejante. Júnior não escondia o nervosismo com a presença da reportagem. No mesmo dia, a convite do chefe, ele relata que foi a uma festa na Praia do Futuro em uma barra de praia, onde provou a cocaína: “ai eu gostei”. Em cadeia, de chefe em chefe, a venda na empresa tornou-se rotina. “Eu passava mais tempo indo lá em casa do que trabalhando. E tudo era para cargo elevado. Num era negócio de peão não”, diz Júnior. De quinta a domingo, ele tinha que abastecer cerca de 20 pessoas na fábrica da empresa onde trabalhava. “Antes, eu não era ligado com isso. Sabia que meu irmão usava. Mas eu nunca tinha usado. A gente morava numa casa de três andares. Eu sabia que a polícia iria chegar lá pra pegar meu irmão, por isso minhas contas eram separadas pra não misturar as coisas”, explica.
Nas festas juninas de 1996, o traficante estava consumado. Júnior conta que a demanda aumentou a ponto de ter que estocar o produto na própria empresa, mesmo sem o conhecimento dos chefes: “Eu pegava a moto, dava a volta no quarteirão e simulava que ligava pra meu irmão. Passei a ser traficante já.” Em 2001, ele foi demitido da empresa, onde trabalhava desde 1988. A cocaína não fazia mais efeito. O crack, então, era a salvação. Com o irmão preso, ele fala que teve de ir buscar “do mole”- cocaína - para fazer “do duro” ou “brita” - crack. “Ai, eu conheci o Lagamar e as pessoas que compravam do meu irmão”, diz.
“O que dá dinheiro é a cocaína e o crack, por isso não procurava outra coisa.” No Lagamar, ele conheceu os “cartãozeiros”, golpistas que utilizam de uma máquina chamada “chupa cabras” para clonar o cartão de correntista de banco. “Eles gostavam muito de mim. Sabiam que eu tinha uma mercadoria boa. Passavam 15 dias usando direto e vinham de Belo Horizonte, Maranhão e Natal”, diz Júnior.
O preço e o efeito. “Cinco gramas era R$110. Depende da qualidade. Chegava até a R$200, se for da pedra branca. Eu vendia por R$150 e ganhava R$40. Chegava a tirar R$1.500 por fim-de-semana”, explica Júnior. Ele fala que os cartãozeiros compravam em grande quantidade: “Num faltava dinheiro não. Era dinheiro bem novim na liga”.
O recuperante diz que os clientes golpistas “davam uma tacada” - golpe - e voltavam para o Estado de onde vinham, ao perceber que a polícia estava investigando. “Enquanto eles estavam viajando, eu me acabava aqui com a pedra. O crack vicia na primeira tacada”, confessa. Ele explica que os efeitos são diferentes. A cocaína “dá vontade de sair” e “você fica ligado”. Segundo Júnior, ele chegou a ficar oito dias acordado por causa da droga. Já o crack, “te interna. Você fica escutando e vendo coisas que não existem”, relata.
A mãe não sabia. Maria Carmelita Gonçalves Valentim tem 71, é aposentada e desconhece a trajetória do filho. Dona Carmelita somente tinha certeza que as drogas estavam acabando com o filho. “Ele estava muito bravo. Passava o dia fora e voltava acabado”, expõe. A memória da mãe não guarda as vezes que o filho passava dias fora de casa, mas as lembranças do filho que não comia e dormia no chão, ela não esquece. “Meu Deus, o que é que eu faço”, suplicava a aposentada. Em conversa por telefone com a mãe, o recuperante teria dito que ela saberia a verdadeira história nas páginas do jornal a quem daria entrevista.
Uma batida denúncia anônima teria levado uma batida policial à casa de Júnior, onde foi encontrado maconha, cocaína e maconha. De prontidão, atribuiu a posse da droga à Ricardo Willian Gonçalves Valentim, tendo em vista que Júnior já havia iniciado o tratamento para dependentes químicos. Ricardo foi preso novamente, dessa vez, por conta do irmão, diz. O relato da mãe mostra um fim, temporário, para a história de dois filhos envolvidos com as drogas. Um se recupera e o outro está no IPPOO (Instituto Penal Professor Olavo oliveira).
Recuperação. Com o intuito de deixar o sobrinho para ser interno na Fazenda da Esperança, Júnior acabou gostando da Casa e resolveu ficar. Ele está há três meses na entidade, onde pretende permanecer até o fim, um ano. A rotina agora é trabalho, oração e convivência com outros 41 ex-dependentes químicos, filosofia da Casa. Júnior diz não saber o que vai fazer quando sair da casa, mas pretende trabalhar e cuidar da mãe. Ele finaliza a entrevista dizendo que tem a sinuca como atividade preferida e que, um dia, vai reformá-la.
A Fazenda da Esperança possui 44 unidades no Brasil e trabalha na recuperação de dependentes químicos desde 1999 no Ceará. Ela foi fundada, em 1979, pelo frei Hans Steppel e por Nelson Resende. A instituição será a única a ser homenageada pelo Papa Bento VII, no mês de maio, em São Paulo. Por isso, a casa está precisando de doações para a viagem.
Amador. O delegado titular do Departamento de Investigação de Narcóticos (Dnarc), Bruno de Figueiredo, classificou o tráfico de drogas, no Ceará, de “amador, sem estrutura e sem um poder central”. Para ele, o esquema de venda de entorpecentes não pode ser comparado ao do Rio de Janeiro. O Denarc fez um mapeamento da Capital e concluiu que existem quatro áreas onde o tráfico é forte: Região do 6º. Distrito Policial, que cobre a Favela Por-do-sol e São Miguel; 13º Distrito Policial, correspondente ao Lagamar e Cidade dos Funcionários; 30º Distrito Policial, o mais crítico e pega o Jangurussu e o Conjunto Palmeiras II; por fim, o 8º. Distrito Policial, onde estão localizada a favela Rosalina. Essa última região faz fronteira com o Pantanal.
Ele confirma que traficantes presos, portando crack, estão na frente das estatísticas. A maconha é apreendida em maior quantidade, mas menos pessoas estão usando, afirma. O mês de fevereiro fortaleceu os números e registrou, em Fortaleza, a apreensão de 334g de crack, em detrimento de 239,63g de maconha. Bruno atribui a mudança ao baixo preço da droga, além de viciar mais rapidamente. Ano passado, de acordo com o Denarc, saíram de circulação 91,002 kg de maconha, 24,448 kg de crack, 445,84 g de cocaína, 17.855 unidades de comprimidos psicotrópicos, além de 3.555 mais 190,21 de outros tipos de drogas, que inclui LSD e micropontos.